CARIDADE (22): BOM HUMOR (3)

EVANGELHO – Lc 10, 38-42

Naquele tempo: Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra. Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela aproximou-se e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!” O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas. Porém, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”.
– Palavra da Salvação
– Glória a vós, Senhor

Olhar para Jesus:
o Evangelho de hoje nos traz o famoso episódio das duas irmãs Marta e Maria que moravam em Betânia e que tiveram duas atitudes diferentes ao receberem Jesus em sua casa. Uma, Maria, põe-se aos pés de Jesus para ouvi-lo e outra, Marta, considera mais importante o cuidado da casa e se dedica a isto. Nosso Senhor diz que Maria escolheu a melhor parte, ensinando-nos que Ele deve vir em primeiro lugar. Que o Evangelho de hoje nos sirva para pensarmos se realmente Deus está em primeiro lugar para nós.

Dando continuidade à nossa série das terças-feiras sobre a caridade, estamos refletindo sobre a virtude do bom humor. Na última vez falamos que o bom humor é uma verdadeira virtude cristã. Hoje, seguindo o livro “O Bom humor” da editora Quadrante, vamos entender porque rimos.

* * *

Passamos grande parte da existência a rir. Quase não sabemos conversar sem alguma brincadeira. Logo, mesmo que não tomemos o riso a sério, não podemos negar-lhe alguma importância.

Será perda de tempo? Fraqueza humana? Simples sinal distintivo deste pitecantropo? Para que serve rir? Que sentido e utilidade terá na vida humana e na vida de um cristão? (…)

O SENTIDO DE PERSPECTIVA

Rimos porque o mundo é cômico e nós o somos também. Chesterton queixava-se de que, sempre que escrevia cósmico, era certo e sabido que na tipografia o trocavam por cômico. Mas, no fundo, concordava: tudo o que é cósmico é cômico. Basta pensar na girafa, no avestruz, no hipopótamo… Ou em nós mesmos! Olhar-nos ao espelho e reparar nessa bola meio amassada que trazemos em cima do pescoço, com dois abanos dum lado e doutro, mais dois pisca-piscas, mais o focinho esburacado… Nós, estes seres urbanos, encaixotados em cubos e cubículos, com gente a andar por cima de nós e outra gente por baixo…

Por que rimos? Porque somos seres extraterrestres. Nem mais, nem menos. Pelo corpo, somos daqui; pela alma, de fora. Se fôssemos só da terra, acharíamos tudo natural, sem sabor, anódino, como acontece com o caracol e a barata; mas, a nós, tudo nos é de certo modo estranho; não acabamos de habituar-nos totalmente a esta existência.

Por isso não acredito nos outros extraterrestres. Andam por aí às voltas, assistem ao nosso espetáculo, e não desatam a rir conosco? Então, ou não existem ou são tolos. E, para não os ofender, prefiro que não existam.

Somos meio extraterrestres. Não somos daqui. Tudo nos surpreende: a terra, o céu, os bichos, as estrelas, nós mesmos, esta curiosa existência que ora nos assusta, ora nos maravilha, ora nos diverte… E por quê? Porque somos seres inteligentes. Percebemos, por um lado, que a vida é coisa séria, “um negócio muito perigoso”, como dizia Guimarães Rosa; e, por outro, que é uma grande anedota, “uma história de doidos contada por um idiota”, na conhecida expressão de um personagem de Shakespeare. Quem só vê um destes aspectos está zarolho de entendimento, porque efetivamente a vida é ambas as coisas.

Quem não reconhecerá que somos grandes e minúsculos ao mesmo tempo? Existentes e sem razão de existir? Com aspirações infinitas e queda de cabelo? Imortais que se resfriam? Enfim, alma e corpo em unidade profundíssima? Terrestres como as galinhas e extraterrestres como os Anjos! Pela alma, com anseios de eternidade; pelo corpo, queremos feijoada…

A realidade tem de ser vista com ambos os olhos. Se falta um, perde-se perspectiva: acumulam-se as formas e as cores diante de nós, como se estivessem coladas umas às outras, num mesmo plano, e custa-nos imaginá-las separadas no espaço, mais próximas ou mais distantes.

Algo de semelhante acontece com a inteligência: se não focaliza os vários aspectos da vida, dá a tudo igual importância e pouco entende dela. Ou toma tudo a sério, preocupando-se tanto com a ameaça de uma guerra nuclear como com o atraso do ônibus (e daí procedem essas pessoas terríveis que dramatizam tudo), ou leva tudo na brincadeira — e daí nascem os piadistas incorrigíveis, que só sabem responder com trocadilhos às questões mais transcendentes. Por sinal, os trágicos provocam riso, e os piadistas dão pena…

Pessoa normal será a pessoa com bom humor, com sentido das proporções, capaz de ver o côncavo e o convexo, o grandioso e o mesquinho, o profundo e o superficial. Talvez não saiba por que ri em algumas circunstâncias, mas costuma ter motivo. Só há pouco tempo compreendi, por exemplo, a razão de ser do nosso riso espontâneo quando vemos um ilustre sujeito a estatelar-se no chão (desde que não se machuque muito…). Quem me explicou foi certo personagem de uma peça do poeta inglês T. S. Eliot: é porque, de repente, vemos o sujeito transformar-se em objeto! A respeitável pessoa foi dominada pela lei da gravidade, e essa mistura e conversão de sujeito em coisa a rebolar é realmente surpreendente e cômica.

A propósito da gravidade, volto a citar Chesterton. Referindo-se à queda dos Anjos maus, diz ele que caíram justamente pela força da gravidade; tornaram-se tão graves, levaram-se tanto a sério que se despenharam em queda livre até ao inferno! Faltou-lhes a humildade do bom humor. Não aceitaram ser simples criaturas, com as inevitáveis limitações, apesar da sua grandeza; encheram-se de soberba, de autossuficiência, de solenidade, e — zás! — despencaram-se no abismo!

O bom humor é sabedoria, leveza, humildade, higiene mental, sanidade, realismo, e respeito por Deus, nosso Criador. Por isso, o profundo filósofo que não aprecia uma boa piada não é um autêntico sábio. E até um místico que não saiba rir de si mesmo não alcança a plena perfeição.

Com isto não vou negar a grande santidade do ilustre Doutor da Igreja e mestre de vida interior que foi São João da Cruz. Só lembro a correção bem humorada que lhe fez um dia a sua mãe espiritual, Santa Teresa de Jesus, numa ocasião em que se entretinham com outras pessoas num jogo de considerações sobre algum tema que ela propunha e que depois ela fazia uma apreciação. Pois o comentário final que fez à profundíssima glosa do Santo Doutor foi esta: “De gente tão espiritual, livre-nos Deus!”

Lição: saber olhar a realidade com toda a sua dramaticidade, mas também com toda a sua graça.

CARIDADE (22): BOM HUMOR (3)

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